Empregado de fundação estatal não tem direito à estabilidade extraordinária (ADCT, art. 19)
Nosso plano de Questões Discursivas traz, a cada semana, 4 (quatro) novas questões de caráter dissertativo, sempre inéditas e exclusivas, para serem respondidas pelos nossos alunos e, na sequência, corrigidas e avaliadas pelos nossos professores, com a seleção das melhores respostas.
Em recente rodada, uma das questões veio assim formulada:
(EMAGIS) Faustão da Silva era empregado da Fundação Padre Anchieta – Centro Paulista de Rádio e TV Educativas (FPA), onde permaneceu trabalhando, mesmo após se aposentar espontaneamente em 1995, até ser despedido sem justa causa em 2005.
Ingressou, então, com reclamatória trabalhista contra a aludida fundação ao argumento de que seria estável, uma vez que ingressara nos quadros da reclamada em 1981 e, desde então, lá atuara ininterruptamente, sem nenhum rompimento do vínculo até a demissão ocorrida em 2005.
Nesse caso, considerando (a) que a Fundação Padre Anchieta – Centro Paulista de Rádio e TV Educativas (FPA) teve a sua criação autorizada por lei e foi instituída pelo Poder Público, (b) que recebe dotação orçamentária e (c) que atua na exploração de atividades de rádio e televisão com objetivos educacionais e culturais, responda: Faustão da Silva tem direito à estabilidade?
Confira, abaixo, uma síntese dos comentários preparados pelos nossos professores:
Considerando a orientação fixada pelo Supremo Tribunal em sede de repercussão geral, a resposta a esta questão é negativa: Faustão da Silva não tem direito à estabilidade.
Note-se que a controvérsia gira em torno do alcance da norma inscrita no art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Carta de 1988, que expressa: “Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público.”
Ao abordar as normas constitucionais pertinentes aos servidores públicos, Maria Sylvia Zanella Di Pietro discorre a propósito da estabilidade:
“Tradicionalmente, a estabilidade, no direito brasileiro, tem sido entendida como a garantia de permanência no serviço público assegurada, após dois anos de exercício [atualmente, três anos, nos moldes do art. 41 da CRFB, alterado pela EC nº 19/1998], ao servidor nomeado por concurso, que somente pode perder o cargo em virtude de sentença judicial transitada em julgado ou mediante processo administrativo em que lhe seja assegurada ampla defesa.
Excepcionalmente, a Constituição de 1988, a exemplo de Constituições anteriores, conferiu estabilidade a servidores que não foram nomeados por concurso, desde que estivessem em exercício na data da promulgação da Constituição há pelo menos cinco anos continuados (art. 19 das Disposições Transitórias). O benefício somente alcançou os servidores públicos civis da União, Estados, Distrito Federal, Municípios, da Administração Direta, autarquias e fundações públicas. Excluiu, portanto, os empregados das fundações de direito privado, empresas públicas e sociedades de economia mista. O reconhecimento de estabilidade a esses servidores não implicou efetividade, porque esta só existe com relação a cargos de provimento por concurso; a conclusão se confirma pela norma do § 1º do mesmo dispositivo, que permite a contagem de serviço prestado pelos servidores que adquiriram essa estabilidade excepcional, ‘como título quando se submeterem a concurso para fins de efetivação, na forma da lei’.
O dispositivo excluiu do direito a essa estabilidade os professores universitários, os ocupantes de cargos, funções e empregos de confiança ou em comissão, além dos que a lei declara de livre exoneração; no entanto, o tempo de serviço em cargo ou função de confiança poderá ser contado para fins de estabilidade, desde que seu ocupante seja servidor.
Isto significa que a Administração Pública possui dois tipos de servidores estáveis: os que foram nomeados por concurso público e cumpriram o período de estágio probatório de dois anos; e os que adquiriram a estabilidade excepcional, independentemente de concurso, em decorrência de benefício concedido pelas várias Constituições. As duas categorias têm igual garantia de permanência no serviço público: só podem perder seus cargos, empregos ou funções por sentença judicial transitada em julgado ou processo administrativo em que tenham assegurada ampla defesa.” (‘Direito administrativo’. 31ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 784)
De fato, ao lado da “estabilidade ordinária” com assento no art. 41 da Constituição Federal, a doutrina costuma recordar essa “estabilidade extraordinária”, também chamada de “estabilização constitucional”, prevista no art. 19 do ADCT, conforme aponta Rafael Carvalho Rezende Oliveira (‘Curso de direito administrativo’. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 714).
Para além disso, a resolução deste exercício recomenda que se aborde o conceito e as espécies de fundações em nossa ordem jurídica. Retomamos, a propósito, o escólio de Rafael Carvalho Rezende Oliveira no sentido de que as “fundações, em geral, são pessoas jurídicas, sem fins lucrativos, cujo elemento essencial é a utilização do patrimônio para satisfação de objetivos sociais, definidos pelo instituidor. As fundações podem ser instituídas por particulares ou pelo Estado. No primeiro caso, temos a fundação privada, regida pelo Código Civil (art. 44, III, e arts. 62 a 69 do CC). No segundo caso, a hipótese é de fundação estatal (também denominada de governamental ou pública), integrante da Administração Pública Indireta (art. 37, XIX, da CRFB e art. 4.º, II, “d”, do DL 200/1967).” (op. cit., p. 141)
Destaca o ilustre Professor, ainda, a enorme divergência doutrinária em relação à natureza jurídica das fundações estatais, que persiste mesmo após a inclusão, pela Lei nº 7.596/1987, do inciso IV no art. 5º do Decreto-Lei nº 200/1967 (trazendo a seguinte definição normativa: “IV - Fundação Pública - a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, sem fins lucrativos, criada em virtude de autorização legislativa, para o desenvolvimento de atividades que não exijam execução por órgãos ou entidades de direito público, com autonomia administrativa, patrimônio próprio gerido pelos respectivos órgãos de direção, e funcionamento custeado por recursos da União e de outras fontes”). Refere, de toda sorte, em consonância com a orientação traçada pela Suprema Corte, que a corrente majoritária admite que tais entidades integrantes da Administração Indireta podem ser de direito público ou de direito privado, dependendo a sua personalidade jurídica – pública ou privada – da opção legislativa e da presença (ou não) das prerrogativas públicas (poder de império).
Pois bem. A complexidade do tema envolvendo a precitada disposição constitucional transitória e a sua incidência relativamente ao pessoal vinculado a fundações públicas acabou sendo revelada, inclusive, pelo resultado “apertado” que se verificou no Plenário da Suprema Corte ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 716.378/SP (com cinco votos favoráveis à tese advogada pelo reclamante, no que atine à pretensa estabilidade nos quadros da entidade fundacional). No julgamento daquele recurso sob a sistemática da repercussão geral – interposto, destaque-se, pela própria Fundação Padre Anchieta – Centro Paulista de Rádio e TV Educativas (FPA), entidade destinada a promover atividades educativas e culturais através do rádio e da televisão, cuja criação foi autorizada pela Lei nº 9.849/1967 do Estado de São Paulo –, iniciado em 01/10/2014 e concluído na assentada de 07/08/2019, prevaleceu o entendimento de que a estabilização constitucional em foco (art. 19 do ADCT) não alcança empregados de fundações públicas de direito privado.
Assim restou consolidada a tese de repercussão geral (Tema nº 545): “1. A qualificação de uma fundação instituída pelo Estado como sujeita ao regime público ou privado depende (i) do estatuto de sua criação ou autorização e (ii) das atividades por ela prestadas. As atividades de conteúdo econômico e as passíveis de delegação, quando definidas como objetos de dada fundação, ainda que essa seja instituída ou mantida pelo Poder público, podem-se submeter ao regime jurídico de direito privado. 2. A estabilidade especial do art. 19 do ADCT não se estende aos empregados das fundações públicas de direito privado, aplicando-se tão somente aos servidores das pessoas jurídicas de direito público.”
Tendo em vista que o respectivo acórdão aguarda publicação, colacionamos a síntese do julgado noticiada no Informativo STF nº 946, finalizando nossos breves apontamentos:
“Art. 19 do ADCT e fundação pública de natureza privada – 3
A qualificação de uma fundação instituída pelo Estado como sujeita ao regime público ou privado depende (i) do estatuto de sua criação ou autorização e (ii) das atividades por ela prestadas. As atividades de conteúdo econômico e as passíveis de delegação, quando definidas como objetos de dada fundação, ainda que essa seja instituída ou mantida pelo poder público, podem se submeter ao regime jurídico de direito privado.
A estabilidade especial do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) (1) não se estende aos empregados das fundações públicas de direito privado, aplicando-se tão somente aos servidores das pessoas jurídicas de direito público.
Com essas teses de repercussão geral (Tema 545), o Plenário, por maioria e em conclusão de julgamento, deu provimento a recurso extraordinário para reconhecer a legalidade da demissão sem justa causa do recorrido e afastar a decisão que determinara sua reintegração (Informativo 761).
No caso, o empregado, ora recorrido, ingressou, em 1981, na Fundação Padre Anchieta – Centro Paulista de Rádio e TV Educativas (FPA), onde permaneceu trabalhando de forma ininterrupta, mesmo após se aposentar espontaneamente em 1995, até ser despedido sem justa causa em 2005. Em virtude disso, pleiteou sua reintegração, que foi negada pelo juízo de primeira instância e por tribunal regional, ambos sob o fundamento de que a aposentadoria espontânea extinguiria o contrato de trabalho. Na sequência, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) proveu recurso de revista, para afastar a tese da extinção automática do contrato de trabalho e reconhecer a estabilidade do art. 19 do ADCT.
Inicialmente, o colegiado rememorou entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido de que a aposentadoria espontânea somente dá causa à extinção do contrato de trabalho se ocorrer o encerramento da relação empregatícia. No ponto, o acórdão impugnado está de acordo com a orientação jurisprudencial.
Ato contínuo, sublinhou que os objetivos institucionais da recorrente – exploração de atividades de rádio e televisão com objetivos educacionais e culturais – revelam que ela não exerce atividade estatal típica. Tanto no atual regime constitucional quanto no anterior, a exploração dos serviços de telecomunicação pelo Estado poderia se dar diretamente ou por meio de concessão pública. Não se caracteriza serviço público próprio, até porque, apesar da alta relevância social, não implica exercício de poder de polícia, tendente à limitação das liberdades dos cidadãos. Por conseguinte, era plenamente viável a instituição de fundação de natureza privada para a exploração de parte desse complexo comunicacional, na área de rádio e televisão.
A FPA sujeita-se ao regime de direito privado, cuja conformação se assemelha mais à das empresas públicas e das sociedades de economia mista do que à das autarquias. Não foi por outra razão que a lei autorizou a sua instituição e definiu o regime de pessoal como celetista.
O Tribunal asseverou que o aludido dispositivo possui abrangência limitada aos servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, entre os quais não se compreendem os empregados de empresas públicas e sociedades de economia mista. Além disso, a estabilidade excepcional não se harmoniza com os direitos e deveres previstos na legislação trabalhista, notadamente o regime de proteção definido pelo FGTS, consagrado no art. 7º, III, da Constituição Federal (CF). Assim, o art. 19 do ADCT só se aplica aos servidores de pessoas jurídicas de direito público. Essa dedução é corroborada pelo fato de não haver uma única menção nos autos de que a recorrente tivesse, após a CF de 1988, realizado a transformação dos empregos em cargos públicos, ocupados automaticamente pelos antigos servidores celetistas. A mutação seria imprescindível para a devida adequação do quadro de pessoal da fundação ao texto constitucional.
Portanto, o termo “fundações públicas”, constante do art. 19, deve ser compreendido como fundações autárquicas, sujeitas ao regime jurídico de direito público. O preceito não incide em relação aos empregados das fundações públicas de direito privado. Como o recorrido não se beneficiou da estabilidade, era possível sua demissão sem justa causa, sem incorrer em afronta ao art. 7º, I, da CF (2).
Vencidos os ministros Rosa Weber, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que negaram provimento ao recurso extraordinário. Para eles, a referida estabilidade se aplica aos empregados da FPA que preencherem as condições do art. 19 do ADCT.
(1) ADCT: “Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público. § 1º O tempo de serviço dos servidores referidos neste artigo será contado como título quando se submeterem a concurso para fins de efetivação, na forma da lei. § 2º O disposto neste artigo não se aplica aos ocupantes de cargos, funções e empregos de confiança ou em comissão, nem aos que a lei declare de livre exoneração, cujo tempo de serviço não será computado para os fins do "caput" deste artigo, exceto se se tratar de servidor. § 3º O disposto neste artigo não se aplica aos professores de nível superior, nos termos da lei.”
(2) CF: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I – relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos;”
RE 716378/SP, rel. Min. Dias Toffoli, julgamento em 1º e 7.8.2019. (RE-716378)”
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