Responsabilidade objetiva do empregador em acidente de trabalho envolvendo atividades perigosas
Nosso plano de Questões Discursivas traz, a cada semana, 4 (quatro) novas questões de caráter dissertativo, sempre inéditas e exclusivas, para serem respondidas pelos nossos alunos e, na sequência, corrigidas e avaliadas pelos nossos professores, com a seleção das melhores respostas.
Em recente rodada, uma das questões veio assim formulada:
(EMAGIS) Pedro Valente mantém vínculo empregatício, na função de vigilante armado, com a empresa Caixa Forte Ltda., que se dedica ao transporte de valores e segurança patrimonial.
Sua vida veio de ser totalmente mudada após aquele fatídico dia 1º/04/2019.
Enquanto “alimentavam” caixa eletrônico situado em determinado supermercado, Pedro e seus companheiros de ofício foram surpreendidos por assaltantes fortemente armados que, na tentativa de subtrair o numerário, iniciaram sucessivos disparos com arma de fogo que acabaram vitimando dois vigilantes, os quais faleceram no local. Pedro não sofreu nenhum arranhão, exceto em sua mente, que nunca mais seria a mesma. Com efeito, o incidente gerou-lhe graves consequências psíquicas que desaguaram em uma incapacidade total e permanente ao labor.
Nessa situação, indaga-se: partindo da premissa de que houve acidente de trabalho, a responsabilização civil do empregador pelos danos materiais e morais experimentados por Pedro será de natureza subjetiva ou objetiva?
Confira, abaixo, uma síntese dos comentários preparados pelos nossos professores:
O debate em torno desta temática tem como ponto de partida a norma inscrita no art. 7º, inciso XXVIII, da Constituição Federal, in verbis: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XXVIII - seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;”
A esse respeito, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orientou-se no sentido de que a indenização de natureza civil, decorrente da responsabilidade do empregador por sinistro ocorrido com empregado durante a jornada de trabalho (caracterizando “acidente de trabalho”), é fundada em presunção relativa de culpa. Demonstrada a ocorrência da lesão e o nexo de causalidade, caberia ao empregador o ônus da prova relativo a causas excludentes de sua responsabilização, tal como comprovar que tomou todas as medidas necessárias à preservação da incolumidade física e psicológica do empregado em seu ambiente de trabalho, respeitando as normas de segurança e medicina do trabalho (nos moldes do art. 157 da CLT).
Essa linha de intelecção revela, em primeiro plano, que o rol de direitos sociais contidos no Texto Magno não é exaustivo, permitindo ampliação com vistas à melhoria da condição social do trabalhador. Com efeito, a “remissão feita pelo art. 7º, XXVIII, da CF, à culpa ou dolo do empregador como requisito para sua responsabilização por acidentes do trabalho, não pode ser encarada como uma regra intransponível”, sendo possível estender o alcance da previsão normativa do art. 927, parágrafo único, do Código Civil, que admite a responsabilidade objetiva “quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”, às hipóteses de acidente de trabalho.
Confira-se:
“DIREITO CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. INDENIZAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL DO EMPREGADOR. NATUREZA. PRESERVAÇÃO DA INTEGRIDADE FÍSICA DO EMPREGADO. PRESUNÇÃO RELATIVA DE CULPA DO EMPREGADOR. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. - O art. 7º da CF se limita a assegurar garantias mínimas ao trabalhador, o que não obsta a instituição de novos direitos - ou a melhoria daqueles já existentes - pelo legislador ordinário, com base em um juízo de oportunidade, objetivando a manutenção da eficácia social da norma através do tempo. - A remissão feita pelo art. 7º, XXVIII, da CF, à culpa ou dolo do empregador como requisito para sua responsabilização por acidentes do trabalho, não pode ser encarada como uma regra intransponível, já que o próprio caput do artigo confere elementos para criação e alteração dos direitos inseridos naquela norma, objetivando a melhoria da condição social do trabalhador. - Admitida a possibilidade de ampliação dos direitos contidos no art. 7º da CF, é possível estender o alcance do art. 927, parágrafo único, do CC/02 - que prevê a responsabilidade objetiva quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para terceiros - aos acidentes de trabalho. - A natureza da atividade é que irá determinar sua maior propensão à ocorrência de acidentes. O risco que dá margem à responsabilidade objetiva não é aquele habitual, inerente a qualquer atividade. Exige-se a exposição a um risco excepcional, próprio de atividades com elevado potencial ofensivo. - O contrato de trabalho é bilateral sinalagmático, impondo direitos e deveres recíprocos. Entre as obrigações do empregador está, indubitavelmente, a preservação da incolumidade física e psicológica do empregado no seu ambiente de trabalho. - Nos termos do art. 389 do CC/02 (que manteve a essência do art. 1.056 do CC/16), na responsabilidade contratual, para obter reparação por perdas e danos, o contratante não precisa demonstrar a culpa do inadimplente, bastando a prova de descumprimento do contrato. Dessa forma, nos acidentes de trabalho, cabe ao empregador provar que cumpriu seu dever contratual de preservação da integridade física do empregado, respeitando as normas de segurança e medicina do trabalho. Em outras palavras, fica estabelecida a presunção relativa de culpa do empregador. Recurso especial provido.” (STJ, Terceira Turma, REsp 1.067.738/GO, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, DJe de 25/06/2009)
Semelhante compreensão quanto à “presunção relativa de culpa” em se tratando de responsabilidade civil do empregador, decorrente de acidente do trabalho, também foi colocada em evidência nos seguintes arestos, a título exemplificativo: STJ, Quarta Turma, AREsp 85.987-AgInt/SP, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe de 12/02/2019; STJ, Terceira Turma, REsp 1.387.196-AgInt/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe de 11/04/2017.
Ainda, cabe assinalar que há precedentes do Tribunal Superior do Trabalho reconhecendo a responsabilidade objetiva do empregador em casos de acidente de trabalho, considerando o exercício de atividades de risco na execução do contrato laboral. Nessa linha:
“INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, MATERIAIS E ESTÉTICOS. ACIDENTE DE TRABALHO COM MANUSEIO DE SERRA ELÉTRICA. AMPUTAÇÃO DA MÃO ESQUERDA. ATIVIDADE DE RISCO. APLICAÇÃO DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA. [...] Conforme concluiu a Corte a quo, a atividade profissional desempenhada com o uso de motoserra deve, de fato, ser considerada de risco, uma vez que o autor laborava com utilização de serra elétrica, equipamento cortante, que, ainda que mediante o seu uso adequado, a qualquer erro, desatenção, ou ainda acontecimento fortuito que interfira momentaneamente no labor realizado, pode, de fato, ocasionar acidente de trabalho de proporções consideráveis. Ademais, segundo apurado no próprio laudo pericial produzido nos autos, não existem equipamentos de proteção capazes de evitar lesões causadas por serras elétricas. De fato, na hipótese dos autos, as funções exercidas pelo autor, relativas ao corte de árvores com a utilização de motosserra, certamente apresentam risco acentuado, ou seja, um risco mais elevado que aquele inerente às atividades de risco em geral, diante da maior potencialidade de ocorrência do sinistro, aí incluídos todos os possíveis fatos provenientes do exercício do labor, que possam causar dano ao trabalhador, o que configura o dano moral in re ipsa (decorrente do próprio fato em si). Com efeito, o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil preconiza que a responsabilidade independerá da existência de culpa quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Está-se diante da responsabilidade objetiva, em que, mesmo ausente a culpa ou o dolo do agente, a reparação será devida. Dessa forma, para a aplicação da teoria da responsabilidade objetiva decorrente do exercício de atividade de risco na execução do contrato de trabalho, basta a demonstração do dano e do nexo causal, sendo desnecessário o exame da culpa do empregador, porquanto, tratando-se de acidente de trabalho ocorrido no exercício de atividade de risco acentuado, caracterizada está a culpa presumida do empregador. Diante da jurisprudência desta Corte, que adota a responsabilidade objetiva do empregador, nos termos do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil, por acidente ocorrido com empregado no desempenho de atividade de risco, caso em que é desnecessária a comprovação de culpa, e constatando-se que o Tribunal Regional, embora tenha considerado que a responsabilidade a ser aplicada é a objetiva, decidiu a demanda com base na ausência de culpa da reclamada, constata-se que a decisão regional foi proferida mediante má aplicação do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil. Recurso de revista conhecido e provido.” (TST, Segunda Turma, RR 2091-68.2012.5.23.0037, Rel. Ministro José Roberto Freire Pimenta, publicado em 09/08/2019)
Seja como for, a natureza jurídica da responsabilidade do empregador no que atine à reparação de danos causados a empregado, decorrentes de acidente do trabalho, tendo em vista o disposto no art. 7º de nossa Lei Maior (caput e inciso XXVIII, em especial), foi submetida ao Supremo Tribunal no Recurso Extraordinário nº 828.040/DF, sob a sistemática da repercussão geral (assentou-se a relevância da matéria em 10/02/2017). A controvérsia a ser dirimida pela Excelsa Corte restou assim sintetizada: “Possibilidade de responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho” (Tema nº 932).
Apreciado recentemente o mérito do recurso paradigma, o Plenário do Supremo Tribunal, por maioria, fixou entendimento de que o trabalhador que atua em atividade de risco tem direito à indenização em razão de danos decorrentes de acidente de trabalho, independentemente da comprovação de culpa ou dolo do empregador. Muito embora a Carta Política preveja, como regra, a responsabilidade subjetiva em caso de acidentes de trabalho, não impediu a ampliação dos direitos sociais no âmbito da legislação infraconstitucional, inserindo-se aí o disposto no art. 927, parágrafo único, do Código Civil.
É pertinente registrar que o Ministro Roberto Barroso, endossando a tese no sentido de que a responsabilidade do empregador por acidente de trabalho é objetiva (à intelecção do art. 7º, caput, da CRFB, combinado com o art. 927, parágrafo único, do CC/2002), ponderou que se caracterizam como atividades de risco apenas aquelas definidas como tal por ato normativo válido, que observem os limites do art. 193 da Consolidação das Leis do Trabalho. Veja-se o teor da norma Consolidada (redação emprestada pela Lei nº 12.740/2012): “Art. 193. São consideradas atividades ou operações perigosas, na forma da regulamentação aprovada pelo Ministério do Trabalho e Emprego, aquelas que, por sua natureza ou métodos de trabalho, impliquem risco acentuado em virtude de exposição permanente do trabalhador a: I - inflamáveis, explosivos ou energia elétrica; II - roubos ou outras espécies de violência física nas atividades profissionais de segurança pessoal ou patrimonial.”
A suma do julgado foi noticiada no Informativo STF nº 950 (aguardando-se a publicação do acórdão, bem assim a definição da respectiva tese de repercussão geral):
“Responsabilidade civil objetiva e acidente de trabalho
O Plenário, por maioria, ao apreciar o Tema 932 da repercussão geral, negou provimento a recurso extraordinário interposto contra acórdão que, com base na teoria do risco inserta no art. 927, parágrafo único, do Código Civil (CC) (1), reconheceu o direito do empregado que desenvolve atividade de risco a ser indenizado pelo seu empregador, por danos morais e materiais decorrente de acidente de trabalho.
No caso, trabalhador contratado por empresa de transporte de valores passou a experimentar graves consequências psíquicas, com a consequente perda total e permanente de sua capacidade laborativa, em decorrência de sua participação em tiroteio verificado em ataque de assaltantes a supermercado no qual malotes de dinheiro estavam sendo acondicionados em carro-forte.
O colegiado inicialmente observou que a questão de direito debatida nos autos estaria em saber se a responsabilidade civil, na hipótese em apreciação, seria subjetiva, o que exige a demonstração de dolo ou culpa, ou objetiva, quando o dever de indenização independe dessa demonstração. Especificamente, questiona-se a compatibilidade do art. 927, parágrafo único, do CC — que tem aplicação geral, e não somente para os casos de acidente de trabalho — com o art. 7º, XXVIII, da Constituição Federal (CF) (2), a permitir a responsabilização objetiva do empregador por danos decorrentes de acidentes de trabalho.
A regra do Direito brasileiro é a da responsabilidade civil subjetiva. Portanto, aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem fica obrigado a repará-lo. Entretanto, para se evitar injustiças, previu que haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, quando esta já prevê atividade perigosa, na hipótese de atividade com risco diferenciado ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, riscos maiores, inerentes à própria atividade.
Além disso, o Código Civil estabeleceu a regra geral da responsabilidade civil e previu a responsabilidade objetiva no caso de risco para os direitos de outrem. "Outrem" abrange terceiros que não tenham qualquer tipo de vínculo com o empregador. Por conseguinte, seria absolutamente incoerente que, na mesma situação em relação ao trabalhador, a responsabilidade fosse subjetiva, e, em relação a terceiros, fosse objetiva.
A Constituição estabeleceu um sistema em que o empregador recolhe seguro (CF, art. 7º, XXVIII). Havendo acidente de trabalho, o sistema de previdência social irá pagar o benefício e o salário. Além do seguro que o empregado tem direito, há também a garantia de indenização, quando o empregador tenha incorrido em dolo ou culpa. Portanto, a Constituição, de uma maneira inequivocamente clara, previu a responsabilidade subjetiva.
Entretanto, o caput do art. 7º da CF, ao elencar uma série de direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, assenta a possibilidade de instituição “de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Dessa forma, é certo que a Constituição assegurou a responsabilidade subjetiva (CF, art. 7º, XXVIII), mas não impediu que os direitos dos trabalhadores pudessem ser ampliados por normatização infraconstitucional. Assim, é possível à legislação ordinária estipular outros direitos sociais que melhorem e valorizem a vida do trabalhador. Em decorrência disso, o referido dispositivo do CC é plenamente compatível com a CF.
No caso concreto, a atividade exercida pelo recorrido já está enquadrada na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) como atividade perigosa [CLT, art. 193, II (3)]. Não há dúvida de que o risco é inerente à atividade do segurança patrimonial armado de carro-forte.
O ministro Roberto Barroso sublinhou que, em caso de atividade de risco, a responsabilidade do empregador por acidente de trabalho é objetiva, nos termos do art. 7º, caput, da CF, combinado com o art. 927, parágrafo único, do CC, sendo que se caracterizam como atividades de risco apenas aquelas definidas como tal por ato normativo válido, que observem os limites do art. 193 da CLT.
Vencidos os ministros Marco Aurélio e Luiz Fux, que deram provimento ao recurso extraordinário. Pontuaram não ser possível, diante da clareza do art. 7º, XXVIII, da CF, cogitar-se de responsabilidade objetiva do tomador dos serviços.
Em seguida, o Tribunal deliberou fixar a tese de repercussão geral em assentada posterior. [...] RE 828040/DF, rel. Min. Alexandre de Moraes, julgamento em 4 e 5.9.2019. (RE-828040)”
Diante do pronunciamento do intérprete maior da Constituição Federal e da situação delineada no enunciado deste exercício, conclui-se que a responsabilização civil do empregador pelos danos materiais e morais experimentados por Pedro Valente será de natureza objetiva.
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