Responsabilidade civil do Estado e legitimidade passiva do agente público causador do dano
Nosso plano de Questões Discursivas traz, a cada semana, 4 (quatro) novas questões de caráter dissertativo, sempre inéditas e exclusivas, para serem respondidas pelos nossos alunos e, na sequência, corrigidas e avaliadas pelos nossos professores, com a seleção das melhores respostas.
Em recente rodada, uma das questões veio assim formulada:
(EMAGIS) Leonardo Coletor é um polêmico auditor fiscal da Receita Federal do Brasil.
Sempre exercendo com muito vigor o seu mister, acabou criando aborrecimentos a muitas empresas da cidade onde atua.
Inconformadas, 6 (seis) dessas empresas ingressaram, simultaneamente, com ações contra a União e contra Leonardo, em litisconsórcio passivo, buscando provimento jurisdicional que os condene, solidariamente, ao pagamento de indenização a título de danos materiais e morais, ao argumento de que o segundo corréu estaria abusando de sua autoridade e constituindo créditos tributários manifestamente indevidos, além de conspurcar a reputação das demandantes perante o público local na medida em que toda ação de fiscalização era, de imediato, alardeada com exageros através da mídia jornalística, sempre acionada por Leonardo a fim de se promover espuriamente pelo exercício autoritário de sua função pública.
Diante dessa situação, indaga-se: Leonardo possui legitimidade passiva ad causam, considerada a aplicação da teoria da asserção (in status assertionis)?
Responda fundamentadamente em até 20 (vinte) linhas.
Confira, abaixo, uma síntese dos comentários preparados pelos nossos professores:
A matéria é novamente trazida ao debate em face do recente julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, do Recurso Extraordinário nº 1.027.633/SP. No paradigma submetido à sistemática da repercussão geral (Tema nº 940), debruçou-se a Corte sobre a possibilidade de um particular, prejudicado pela atuação da Administração Pública, propor ação judicial diretamente contra o agente público responsável pelo ato lesivo.
Como nota introdutória, vale recordar que a chamada “teoria asserção” aponta que a legitimidade e o interesse processual – requisitos necessários à concretização da tutela de mérito (“condições da ação” de que falava o Código de Processo Civil revogado) – são verificados apenas pelas assertivas deduzidas pela parte autora na petição inicial. Na esteira das lições de Elpídio Donizetti, embora repute presentes tais requisitos no exame prefacial da causa, nada impede que o juiz verifique que o direito alegado na inicial não existia, ensejando a improcedência do pedido e consequente extinção do processo com resolução do mérito (‘Curso didático de direito processual civil’. 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 166).
A adoção desta teoria é reconhecida na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça:
“RECURSO ESPECIAL. AÇÃO INDENIZATÓRIA. DANOS MATERIAIS E MORAIS DECORRENTES DE ‘ASSÉDIO SEXUAL’ SOFRIDO NO INTERIOR DE COMPOSIÇÃO DO METRÔ. ALEGADA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DA TRANSPORTADORA. INTERESSE DE AGIR E LEGITIMIDADE AD CAUSAM. EXISTÊNCIA. TEORIA DA ASSERÇÃO. [...] 2. No âmbito do STJ, prevalece a chamada teoria da asserção ou da prospettazione (em contraposição à teoria da apresentação ou da exposição). Sob essa ótica, o exame da legitimidade ad causam e do interesse processual deve ser realizado in statu assertionis, ou seja, à luz das afirmações do autor constantes na petição inicial, sem qualquer inferência sobre a veracidade das alegações ou a probabilidade de êxito da pretensão deduzida. [...]” (STJ, Quarta Turma, REsp 1.678.681/SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 06/02/2018)
“[...] 1. É pacífico o entendimento nesta Corte de que as condições da ação, aí incluída a legitimidade para a causa, devem ser aferidas com base na teoria da asserção, isto é, à luz das afirmações deduzidas na petição inicial. [...]” (STJ, Quarta Turma, AREsp 452.737-AgRg/RJ, Rel. Ministro Raul Araújo, DJe de 16/09/2015)
Voltando o olhar para as premissas do caso hipotético, pode-se entrever, in status assertionis, que as condutas atribuídas ao agente público nas ações judiciais são suficientes para vinculá-lo, pelo menos em tese, aos danos materiais e morais cogitados pelas empresas demandantes.
Entretanto, não ressaem dúvidas de que o tema tem como pano de fundo o disposto no art. 37, § 6º, da Constituição da República, matriz da responsabilidade extracontratual do Estado, na perspectiva da viabilidade de acionamento direto do servidor cujos atos tenham, culposa ou dolosamente, causado prejuízo a outrem.
Não se ignora que a Primeira Turma da Excelsa Corte, em significativo precedente, assentou a chamada tese da ‘dupla garantia’ no que atine ao alcance do referido preceito de nossa Lei Maior. De fato, ao apreciar o Recurso Extraordinário nº 327.904/SP, admitiu-se que somente as pessoas jurídicas de direito público ou as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos podem responder, objetivamente, pela reparação de danos resultantes de ações ou omissões dos seus agentes, enquanto estes atuarem como agentes públicos.
Nessa ordem de ideias, se eventual prejuízo ocorresse por força de agir tipicamente funcional, não haveria como se extrair daquele dispositivo (art. 37, § 6º, da CRFB) a responsabilidade per saltum da pessoa natural do agente (que, se cabível, abrangeria apenas o ressarcimento ao erário, em sede de ação regressiva, depois de provada sua culpa ou dolo). Daí a ‘dupla garantia’: “uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular”.
Por pertinente, colacionamos a respectiva ementa:
“RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO: § 6º DO ART. 37 DA MAGNA CARTA. ILEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. AGENTE PÚBLICO (EX-PREFEITO). PRÁTICA DE ATO PRÓPRIO DA FUNÇÃO. DECRETO DE INTERVENÇÃO. O § 6º do artigo 37 da Magna Carta autoriza a proposição de que somente as pessoas jurídicas de direito público, ou as pessoas jurídicas de direito privado que prestem serviços públicos, é que poderão responder, objetivamente, pela reparação de danos a terceiros. Isto por ato ou omissão dos respectivos agentes, agindo estes na qualidade de agentes públicos, e não como pessoas comuns. Esse mesmo dispositivo constitucional consagra, ainda, dupla garantia: uma, em favor do particular, possibilitando-lhe ação indenizatória contra a pessoa jurídica de direito público, ou de direito privado que preste serviço público, dado que bem maior, praticamente certa, a possibilidade de pagamento do dano objetivamente sofrido. Outra garantia, no entanto, em prol do servidor estatal, que somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional se vincular. Recurso extraordinário a que se nega provimento.” (STF, Primeira Turma, RE 327.904/SP, Rel. Ministro Carlos Britto, DJ de 08/09/2006, p. 43)
Mas é certo que a controvérsia persistia, aguardando-se, conforme noticiamos anteriormente no âmbito do nosso curso, posição definitiva do intérprete maior da Constituição Federal (quanto à viabilidade de responsabilização civil do agente público por danos causados a terceiros, no exercício da função pública, ou prevalência da tese segundo a qual o servidor somente responde administrativa e civilmente perante a pessoa jurídica a cujo quadro funcional estiver vinculado).
O dissenso acerca do tema também se fez perceptível no magistério da doutrina, como bem assinalou Rafael Carvalho Rezende Oliveira:
“Não há dúvida de que o Estado possui legitimidade para responder pelos danos causados por seus agentes. Todavia, há divergência doutrinária sobre a possibilidade de ser proposta ação indenizatória, diretamente, em face do agente público. Sobre o tema existem dois entendimentos:
Primeira posição: a ação somente pode ser proposta em face do Estado, não sendo lícito acionar diretamente o agente público. De acordo com a presente orientação, o art. 37, § 6.º, da CRFB teria consagrado a “teoria da dupla garantia”: a) primeira garantia: a vítima deve ser ressarcida pelos danos causados pelo Estado; e b) segunda garantia: os agentes públicos somente podem ser responsabilizados perante o próprio Estado, não sendo lícito admitir que a vítima de per saltum acione diretamente o agente.
Vale dizer: o Estado indeniza a vítima; o agente público indeniza, regressivamente, o Estado. Nesse sentido: Hely Lopes Meirelles, Diogo de Figueiredo Moreira Neto. A Primeira Turma do STF possui precedentes no mesmo sentido.
Segunda posição: a ação pode ser proposta em face do Estado, do agente público ou de ambos, em litisconsórcio passivo. Nesse sentido: José dos Santos Carvalho Filho, Diógenes Gasparini, Celso Antônio Bandeira de Mello.
Entendemos que a segunda orientação deve prevalecer, uma vez que o art. 37, § 6.º, da CRFB tem por objetivo a proteção da vítima, e não do agente público, abrindo-se três possibilidades no polo passivo da ação indenizatória: a) pessoa de direito público ou de direito privado prestadora de serviços públicos (responsabilidade objetiva); b) agente público (responsabilidade subjetiva); e c) Estado e agente público (responsabilidade solidária).
Registre-se, contudo, que a teoria da dupla garantia foi consagrada expressamente para determinados agentes públicos, tais como os magistrados, escrivães, chefes de secretarias judiciais, oficiais de justiça, membros do Ministério Público, da Advocacia Pública e da Defensoria Pública, que respondem apenas de forma regressiva, inviabilizando-se a responsabilidade direta perante a vítima (arts. 143, 155, 181, 184 e 187 do CPC/2015).” (‘Curso de direito administrativo’. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 780)
Ainda, oportuno referir o entendimento de José dos Santos Carvalho Filho, endossando a segunda posição acima referida:
“De início, não há qualquer dúvida de que a pessoa jurídica de direito público ou a de direito privado prestadora de serviço público têm idoneidade para figurar no polo passivo do processo. Terão, portanto, a condição de rés, porque a elas é imputada a responsabilidade civil e a obrigação de reparar o dano.
Questiona-se, todavia, se é viável ajuizar a ação diretamente contra o agente estatal causador do dano, sem a presença da pessoa jurídica. Há autores que não o admitem. Outros entendem que é viável. Em nosso entender, acertada é esta última posição. O fato de ser atribuída responsabilidade objetiva à pessoa jurídica não significa a exclusão do direito de agir diretamente contra aquele que causou o dano. O mandamento contido no art. 37, § 6º, da CF visou a favorecer o lesado por reconhecer nele a parte mais frágil, mas não lhe retirou a possibilidade de utilizar normalmente o direito de ação. Há certa hesitação na jurisprudência com decisões proibitivas e permissivas.
O entendimento configura-se como notoriamente restritivo: não se compadece com o amplo direito de ação assegurado aos administrados em geral e deixa em situação cômoda o agente que efetivamente perpetrou o dano. Por outro lado, não vislumbramos no ordenamento jurídico fundamento para a blindagem do agente causador do dano em virtude da possibilidade de ser ajuizada ação em face do Estado. Semelhante pensamento, portanto, é antagônico ao sistema de garantias outorgado pela Constituição.
Sendo assim, tanto pode o lesado propor a ação contra a pessoa jurídica, como contra o agente estatal responsável pelo fato danoso, embora seja forçoso reconhecer que a Fazenda Pública sempre poderá oferecer maior segurança ao lesado para o recebimento de sua indenização; por outro lado, a responsabilidade do agente livra o lesado da conhecida demora do pagamento em virtude do sistema de precatórios judiciais. Além dessas hipóteses, ainda pode o autor, no caso de culpa ou dolo, mover a ação contra ambos em litisconsórcio facultativo, já que são eles ligados por responsabilidade solidária. [...]” (‘Manual de direito administrativo’. 32ª ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 625)
De outro lado, chancelando a primeira posição, leiam-se as ponderações de Maria Sylvia Zanella Di Pietro:
“A reparação de danos causados a terceiros pode ser feita no âmbito administrativo, desde que a Administração reconheça desde logo a sua responsabilidade e haja entendimento entre as partes quanto ao valor da indenização.
Caso contrário, o prejudicado deverá propor ação de indenização contra a pessoa jurídica que causou o dano. Pelo artigo 37, § 6º, da Constituição Federal, quem responde perante o prejudicado é a pessoa jurídica causadora do dano, a qual tem o direito de regresso contra o seu agente, desde que este tenha agido com dolo ou culpa.” (‘Direito administrativo’. 31ª ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 837)
Não obstante os argumentos em sentido diverso, prevaleceu na Excelsa Corte a tese da ‘dupla garantia’ no que atine ao alcance do art. 37, § 6º, da Carta da República, restando consolidada a seguinte tese de repercussão geral: “A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa” (Sessão Plenária de 14/08/2019, Ata de Julgamento publicada no DJe-182, de 21/08/2019).
Assim, podemos concluir – resolvendo o caso hipotético retratado neste exercício, à luz da orientação fixada pela Suprema Corte – que Leonardo Coletor não possui legitimidade passiva ad causam.
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